sexta-feira, 26 de novembro de 2010

para uma menina com uma flor

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara– na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, “Minha namorada”, a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora – tão purinha entre as marias-sem-vergonha – a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos – eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações – porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Bocas da noite

Sentada de cócoras na cama, ela olhou-o longamente, percorreu seu corpo nu da cabeça aos pés, como se estudasse as sardas e os poros, e disse:

- A única coisa que eu mudaria em você é o endereço.

E a partir de então viveram juntos, foram juntos, se divertiam brincando pelo jornal no café da manhã e cozinhavam inventando e dormiam feito um nó.


sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Eu disse a uma amiga:
— A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
— Mas lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim.
- E por que tanta solidão no olhar? 
- Às vezes é necessário deixar. Aí dói. De um jeito que a gente fica perdido, cercado de dúvidas e descontentamento, se perguntando tanta, mas tanta coisa... né muito fácil não, seu moço. A gente vai levando porque fez mesmo uma escolha e precisa seguir em frente pra saber em qual caminho vai cair. Mas gostar? Ah, gosto não.

terça-feira, 27 de julho de 2010






















A janela que escolhi tem várias formas e cores. 
Tem cheiro de mar. 
Tem silêncio.
Tem cuidado.
Tem brisa.
Tem calma.
Tem alma.

E amor escondido na retina.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O peso é tão grande que me impede de andar. Impede no sentido que eu deveria conseguir empurrar e não movo para lugar algum. Nem o mundo nem a mim.

A liberdade poderia ser um lugar mais... livre.

sábado, 17 de julho de 2010

- Desço ali... na praça, está vendo?
- Ao lado das crianças correndo ou do basset tomando sol?

E então você lembra que escolhas precisam ser feitas todo o tempo e que nem sempre há como pesar cada uma delas. É o escuro, o incerto.

Teu peito abre um sorriso, você fecha os olhos, pula. Por alguns segundos não importa o que virá: a sensação de solidão dá sentido à existência. Respiração ofegante e a certeza de que escolher foi ainda mais importante que a própria escolha.

sábado, 10 de julho de 2010

Ela contando:

Tuas mãos pequenas ergueram no ar o castelo onde descansei durante anos as cores do pôr-do-sol, num tempo em que o castanho e o oliva se encontravam certamente na frente do espelho que sabiamente colocaste no meu quarto, ao lado direito da grande cama em marfim e ouro que veio de terras ainda mais longínquas que a tua. Eu amava o cheiro doce das tuas botas adentrando o salão principal e a suavidade da tua tez iluminada de sol. Admirava a saudade intensa e inesgotável que os teus gostos me provocavam naquela espera enorme à qual me submetia e desejava cada encontro com mais delicadeza.

Estive cercada de teus fiéis escudeiros naquela redoma onde gentilmente me colocaste para me proteger dos perigos de noites quentes. Não me aborreci pela falta de companhia nem por teres tomado minha vida daquela maneira - eu sabia da necessidade de entrega e percebia nos teus olhos que era porque precisava ser. Nem ousei questionar teus métodos; nem tentei escapar do teu corpo cálido; nem fui.

Abri as janelas a cada nascer do sol para contemplar o horizonte que me deixaste e, incredulamente, numa manhã branca, entendi que não mais voltarias para o meu quarto, meus gestos, meus tons de vermelho - havíamos nos perdido entre o jardim e tuas partidas constantes para além do oásis. Soube assim que caminhaste sob o tapete carmim e compreendi que teu semblante havia mudado tragicamente: não existia nada além do cinza penetrante dos teus olhos. Te observei silenciosa e secretamente enquanto te aproximavas e o mundo se dissolvia ante teus passos longos e duros. As cores desapareceram.

Me deste um trono, uma coroa e as asas que me lançaram do terraço naquele dia chuvoso e triste em que te deixei me olhando da sacada. E nunca mais foste embora.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

uma parte que não tinha

não tem sol nem solução
não tem tempero no meu dia
não faz mal se a tradição nos traduz outra alegria
não ter pressa dá a impressão de que a tarde virou tédio
não tem bala, belo, bola ou balão
não tem bula meu remédio
acho que me perdi numa excursão
que fiz na tua certeza e na contradição 
(que não tem cura)
acho que me perdi numa excursão
que fiz na tua palavra e no teu palavrão
[...]

acho que me perdi numa excursão

no meu único verso o sol é solidão
não tem mal, nem maldição
não tem sereno no meu dia
não tem sombra e assombração
não tem disputa por folia
tem bola de capotão, capitão capture essa menina
tem saudade e saudação
tem uma parte que não tinha... 
uma parte que não tinha... uma parte que não tinha...
de quando eles sabem aquilo que tu adivinhou e desenhou num papel cartonado em cor desbotada e mandou no meio da minha viagem pra confortar as lágrimas que mal tinham se formado no canto do olho borrado e disse sutilmente que tua-mão-na-minha. 

terça-feira, 6 de julho de 2010

traços

Ar frio no rosto, chocolate pra esquentar. Aquele casaco saído do armário, os olhares diferentes na rua, o gosto do mundo novo. Completamente insinuante, sorrindo de canto de boca. Os rumos que mudaram, aquela cor desbotando até chegar ao loiro intenso do sol cortando a pele morena em pleno meio-dia. E dá vontade de correr e gritar e querer e sorrir. Vontade de madrugadas na rua, risos sem motivo, nuances surpreendentes, descobertas na esquina. E o desejo bruto de ler o enigma constante que sai dos olhos e pára na boca úmida e escarlate. De quem? - me pergunto com certeza doce de resposta. Assim o diálogo finda, como os dias nublados e densos do ontem. Como o cheiro de flor recém desperta. Como eu, voando em direção ao mar.

Vês?

domingo, 23 de maio de 2010

Hoje eu pintei as unhas de vermelho. Você, que me conhece tão bem e há tanto tempo, dirá: "Eu sei.", porque é o que acontece todas as vezes. Mas existe um sentido na escolha da cor, lembra? Não é apenas porque combina com o meu cabelo nem com as raivas. Nada ainda?

Quando em dezembro de 2006 eu escolhi a cor havia um motivo. E é dela que vivo todos os dias. Você, que me conhece tão bem e há tanto tempo, dirá: "Claro!". Você, que chegou ontem e mal passou da sala de chá, não entende. Eu, que estou aqui desde sempre, fico feliz que não saiba do que se trata.

Você, estranho, não foi convidado a entrar, sentar e comer biscoitos amanteigados. Você, estranho, está aqui até hoje porque eu me sirvo da sua curiosidade. Continue parado na porta e não se atreva a colocar a cabeça na minha enorme sala de estar. Não adentre meus corredores, não encoste nas paredes, não force a fechadura do quarto.

Existe um sentido em estar do lado de fora. E, como tudo na vida, provém das escolhas. As minhas, não as suas.

Apague a luz quando deixar minha varanda. E não afague meu cachorro.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

(abro um parêntese para a conversa inacabada)

-

Preciso lamber feridas. Não as minhas, mas as dela. 
Preciso enxugar as lágrimas, segurar a mão até dormir. 
Me preocupar o dia inteiro e só sossegar quando a vir sorrindo.

Preciso tanto, tanto.

Esperar o dia novo.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Ela,

E tem meu estômago revirando, a falta de ar e uma ansiedade imensa. E tu não entende e questiona "Mas por que tanta dor? É só chegar", como se o "só" nada significasse. E tento te explicar por todos os meios que o meu coração carrega um peso enorme nos tempos de agora, mas tu nem sabe do que estou falando e insiste na simplicidade do gesto, buscando me convencer. Então sorrio, beijo tua testa e desejo que tenhas sonhos melhores que os meus. Tu sorri de volta, abraça meu peito e diz que em poucos dias sentaremos nesta mesma sala e então te direi como as coisas foram fáceis, porque no fundo, onde ninguém se atreve a encostar, sei o que quero e preciso fazer.

Nossa conversa em sílabas e hiatos foi seguida ao fundo por Caetano cantando os versos que embalaram minha vida em outro momento, mas que, segundo tu, querem me contar em segredo que eu te quero (e não queres) como sou e não te quero (e não queres) como és. Assim mesmo, entendo.

Então me pego pensando que tu tens mais a me dizer do que realmente diz, mas espera que eu descubra sozinha e por isso tenta me fazer enxergar um outro lado da moeda - e tu me conta que toda moeda tem três lados ou mais - para que eu mereça meu sossego.

- Até a volta-, digo em voz alta pra me convencer.
Tu sorri e sai sem olhar para trás, porque é assim que somos.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Não tem limite o tamanho disto.
Só dá pra sentir o peso da alma e a dor no corpo.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

E de repente lhe ocorreu que, estando em silêncio há tanto tempo, talvez não conseguisse mais falar. Ela, que tinha tanto a dizer.

- Vai ter que doer até o fim. So assim as cicatrizes começarão a aparecer.

O abraço veio em seguida, mas o vazio nunca foi embora.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

das insônias

Como pude cair assim nesse fundo poço?
Quando foi que me desequilibrei?


...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

moinhos

Como são instáveis e calmos os ventos da mudança...
Paradoxo.


Descontroem o mundo, os ventos da mudança.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Pensando muito no sol.
Nas cores e saudades do sol.

E pensar que esperei, contei o tempo, sorri.
Só quero mesmo sentar no canto e chorar meu descontentamento.

domingo, 7 de fevereiro de 2010



















Drome pretinha 
Que eu te trago de toda Bahia 
Tudo que der pra trazer 
Com quase todo prazer

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Ela:

No fundo dá pra entender.

É só mergulhar e não se assustar com a ausência de luz, nem com os segredos imensos e tão, tão simples que fazem o coração saltar - bem, simplicidade não é pra todo mundo. O caminho é comprido e existem muitas perguntas sem respostas. Talvez você se perca, talvez queira voltar. O fundo não é apenas para quem o deseja: é preciso saber por onde começar e como ir em frente. E quando estiver lá não esqueça o porquê. Não se encante por ter encontrado, senão continuará vazio. A superfície, sim, é para quem assiste.

Muito meu para que seja seu também.  Mas até deixo você olhar.


Que ninguém se engane com a aparência amena dessa água, cuja superfície transparente esconde a profundidade vivente de um oceano. 
- Rafael Cardoso

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

das insônias

Ansiosos, caminhamos pela praça. As mãos caídas ao redor do corpo, desejando movimentos largos, mas sem perceber por onde começar. É tudo dramático e prevísivel.

- Tu sabes?
- Entendi no primeiro instante daquele sorriso. Que mistério se apresentou.
- E o silêncio, nunca o constrangeu?
- A princípio sim, mas às vezes precisamos do sonho para que o desejo se torne palpável.
- Que pretendes, então?
- Agora, que tudo foi dito em voz alta? Continuar sob os trilhos, esperando o momento de tocá-los. Ainda não consigo lidar com o real.
- Mas e tua cautela, não te fará perdê-la?
- Mas como, se nunca foi minha?

De repente enxergo adiante. Aquele horizonte, tocando o mar, à espera do que não foi dito. E as ondas vêm em sussurro contar um segredo maior que o mundo: ela é minha. Minha.
código&enigma

domingo, 31 de janeiro de 2010

das necessidades

Fica combinado assim: se não te atrapalho, você me dá licença de ser assim do jeito que sou?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

- Diálogo

Ser. Já nada mais restava. Apenas a noite e, dentro dela, o meu silêncio de incompreensão. Meus passos afundavam na areia deixando uma esteira de poças que conteriam as estrelas, não fosse o imenso escuro de tudo. Cada vez mais lento eu caminhava.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

dos livros

Eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando e pensando meu deus mas como você me dói de vez em quando.



Assim mesmo, sem vírgulas nem respirações.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O banho

[...] Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levantei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molhada, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, soltos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certamente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente minha alma também. Nesse instante eu estava verdadeiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silêncio do campo. E eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já invadia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus braços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mornas do último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre esqueci.